domingo, 20 de maio de 2007

Jânio de Freitas e a concorrência fajuta 20 anos depois


Jânio de Freitas ganhou o Prêmio Esso com uma grande sacada denunciando uma concorrência fraudulenta na construção da Ferrovia Norte-Sul. Já se foram 20anos. O Jornal Laboratório da faculdade fez matéria de capa sobre esse tema. Jânio de Freitas volta ao assunto hoje, domingo, dia 20 de maio, em sua coluna na Folha. Vale a pena ler. Embora grande (sic).

Feliz aniversário
Na semana seguinte haveria uma concorrência de US$ 2,5 bilhões e nós já sabíamos os futuros ganhadores
AINDA que pareça, não é coincidência. É o final feliz, embora não para todos, construído pelo longo percurso que levou José Reinaldo Tavares a ministro, a parlamentar, a governador e, nesta semana, à cadeia. Na ocasião mesma em que faz exatos 20 anos, completados no dia 13, o maior dos escândalos provocados pela corrupção em licitações públicas: o da concorrência de US$ 2,5 bilhões, que a Folha comprovava ser fraudulenta, para construção da ferrovia Norte-Sul (ou Maranhão-Brasília) sob a responsabilidade de José Reinaldo Tavares, ministro dos Transportes no governo Sarney.
Concorrências e obras públicas sempre foram cenários de fraudes e alta corrupção, com duas barragens protetoras. Uma, a dificuldade de comprovação, na hipótese (nunca mais do que hipótese) de que um político se dispusesse à denúncia; outra, as variadas ligações das grandes empreiteiras com os meios de comunicação. Ao valor inicial fabuloso, porém, o projeto da Norte-Sul acrescentou a novidade de um esquema complexo para sua implantação.
Uma subsidiária obscura da então estatal Vale do Rio Doce, chamada Valec, foi reativada e deslocada para a órbita do Ministério dos Transportes, com o encargo de fazer as operações relativas à Norte-Sul. A longa extensão da ferrovia foi dividida em 18 setores de construção, cada um deles a ser atribuído a uma empreiteira. A licitação equivalia, portanto, a 18 concorrências. Ou à complicada acomodação dos interesses de 18 grandes empreiteiras, na divisão de lotes com tarefas e valores diferentes, e ainda, no outro lado, os interesses dos que criaram o projeto, geriam a concorrência e conduziriam a obra.
Ainda assim, no dia 7 de maio pude telefonar da redação carioca da Folha para a sede paulista, com um assunto importante. Já diretor de redação, Otavio Frias Filho estava no exterior, falei com Octavio Frias de Oliveira: na semana seguinte haveria uma concorrência de US$ 2,5 bilhões (ele estava a par) e nós já sabíamos os futuros ganhadores, mas o problema era a comprovação do conhecimento antecipado, que desnudaria a concorrência como farsa e demonstraria a fraude e a corrupção. "Já sabemos?" -era mais um desejo irônico de confirmação do que espanto. Sabemos, e a idéia seria publicar disfarçadamente o resultado em alguma parte do próprio jornal.
Não ouvi mais do que uma breve resposta com o sentido indireto de assentimento. Nenhuma advertência, nenhum sinal de apreensão. Não creio que alguém, em qualquer tempo do jornalismo brasileiro até então, pudesse imaginar uma atitude assim, tão objetivamente livre, tão puramente jornalística, de um empresário de imprensa diante de um assunto sempre imaculado por força dos seus muitos perigos. De minha parte, todos os minutos daqueles dias foram de tensão pura, mas com a certeza de que já encontrara naquele telefonema o momento culminante, para mim, de todo o episódio jornalístico da concorrência.
Com o aspecto de comunicado referente a sorteio ou algo assim, e sob o título "Lotes", montei um anúncio, posto entre os classificados, combinando letras que identificassem cada empreiteira e, ao lado de cada uma, o número do setor que lhe caberia como "vencedora" na disputa das propostas técnicas e de preço. Presença já secular nos jornais, os classificados enfim tornavam-se parte do jornalismo: à noite do dia 12 a Valec divulgava o resultado da concorrência e, na manhã seguinte, a Folha reproduzia o anúncio publicado cinco dias antes. A relação oficial dos "vencedores" da disputa era exatamente igual ao antecipado pelo anúncio.
O escândalo foi imediato. No governo sucederam-se reuniões. José Reinaldo Tavares comunicou um processo contra mim na Lei de Segurança Nacional. Dissuadido por Saulo Ramos, consultor-geral da República, transferiu a Romeu Tuma, diretor da Polícia Federal, a instauração de inquérito policial para me incriminar pela afirmação, no texto do dia 13, da ocorrência de fraude e corrupção, que não estariam provadas. Poucos dias depois, em sua reportagem de capa, "Veja" explicava serem necessários uns 10 milhões de anúncios, considerando-se o alto número de concorrentes e de setores em disputa, para acertar o resultado com a precisão exibida.
O procurador da República designado para me interrogar com a PF, e participar da investigação, mostrou-se mais hostil e determinado a me incriminar do que o delegado incumbido do inquérito. Mas, no relatório final, chegou à conclusão da existência de motivos para processo criminal, sim, mas contra os responsáveis e operadores da concorrência, os do lado governamental como os das empreiteiras. Meses de manobras, para esfriar o assunto até o esquecimento, encerraram-se pelo arquivamento do inquérito e da recomendação do procurador.
A anulação da concorrência não impediu José Reinaldo Tavares de seguir sua carreira e sua vocação autêntica, até ser preso, agora, sob acusação de relações corruptas com uma empreiteira, quando governador do Maranhão (até cinco meses atrás). As grades da carceragem da Polícia Federal em Brasília o impediram de também estar na inauguração, feita anteontem por Lula, de um trecho da Norte-Sul. Mas, para celebrar ao menos os fatos que gerou, e que me permitiram provar a corrupção em concorrências de obras públicas, mandei-lhe na cadeia um cartão de cumprimentos. Acompanhado de um bolo com as velinhas de 20 anos.

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