Taí, gostei deste texto do Carlos Alberto Di Franco publicado na íntegra pelo Estadão e reproduzido com cortes no Globo. Recomendo aos meus alunos e ex-alunos.
"Prendo a respiração, tento puxar o ar pela boca, mas o
cheiro dos cadáveres em decomposição invade todos os meus sentidos. Volto
alguns passos, penso em não olhar. Mas, como jornalista, sinto o dever de
escancarar a realidade crua. Na escola, há pelo menos dez corpos insepultos, na
quadra de futebol, ao sol. Pobreza, porcos misturados a pães, arroz e bananas e
trânsito confuso sempre fizeram parte do dia a dia dos haitianos. Até o cheiro
forte da comida temperada e exótica é antigo conhecido dos brasileiros. A
diferença, agora, é que tudo isso está misturado ao cheiro de morte. Assim é o
Haiti. Homens e mulheres que podem sofrer tragédias violentas uma ou duas
vezes, ou até três - e depois sofrer ainda mais."
O relato em primeira pessoa do jornalista Rodrigo Lopes,
repórter multimídia e correspondente internacional do Grupo RBS, mostra a garra
da reportagem de qualidade. A adrenalina da guerra, o infindável sofrimento de
povos castigados pela força misteriosa da natureza, o registro de momentos de
admirável grandeza moral, um impressionante mosaico do drama humano, batem
forte no leitor. O texto está despido de sensacionalismo, mas carregado de
paixão. E o que seria do jornalismo se faltasse o fascínio do repórter por seu
ofício? Rodrigo Lopes, um jornalista jovem e tarimbado, não é um espectador
neutro da história. Ainda bem. Derramou lágrimas. Manifestou indignação. Vibrou
com fagulhas da vida humana.
Guerras e Tormentas (Besouro Box Edições) é um
mergulho do repórter nos principais acontecimentos deste início de século. Vale
a pena.
A capa do livro
"23h do dia 5 de abril, uma terça-feira. Sentado no
chão gelado de paralelepípedos da Via della Conciliazione, sinto-me como uma
ilha, cercada de gente por todos os lados. Para onde olho, há pessoas chorando,
rezando, cantando." A multidão passa diante do corpo do papa. "São
5h48m. Um arrepio percorre o meu braço direito. Estático a dois metros de João
Paulo II, é como se o tempo parasse. Os fiéis passam por mim. Prendo o passo,
ando devagar, para que o guarda não perceba que quero ficar mais tempo. Ganho
uns 15 segundos extras. Mas não é mais possível ficar. Um segurança se aproxima
e interrompe meu êxtase. Proibido celular - ele diz. Os 10 minutos mais
emocionantes da minha vida se encerram em duas frases, ao vivo para o sul do
Brasil: Tenho que desligar a pedido de um segurança. Voltamos a qualquer
momento... Sigo caminhando, à direita do caixão. Tempo apenas para uma foto. Ao
sair da basílica, o azul matutino do céu de Roma se abre na praça. Meu telefone
toca: Seu f.d.p, me fez chorar! Do outro lado da linha, Luciano Wilson, meu
amigo de infância, o Jesus das encenações da via-sacra do nosso bairro, nos
tempos do grupo de jovens da igreja."
Luciano representa a cabeça do leitor médio. Ninguém resiste
à magia da reportagem. Os jornais, prisioneiros das regras ditadas pelo
marketing, estão parecidos, previsíveis e, consequentemente, chatos. Precisam,
com urgência, recuperar a capacidade de surpreender e emocionar o leitor.
A revalorização da reportagem e o revigoramento do
jornalismo analítico devem estar entre as prioridades estratégicas das empresas
de comunicação. É preciso seduzir o leitor com matérias que rompam com a
monotonia do jornalismo declaratório. Menos Brasília e mais vida. Menos aspas e
mais apuração. Menos frivolidade e mais consistência. Além disso, os leitores
estão cansados do baixo-astral da imprensa brasileira. A ótica jornalística é,
e deve ser, fiscalizadora. Mas é preciso reservar espaço para a boa notícia, para
o empreendedorismo, para a inovação. Tem muita coisa interessante acontecendo.
A boa notícia existe. E vende jornal. O leitor que aplaude a denúncia
verdadeira é o mesmo que se irrita com o catastrofismo que domina muitas de
nossas pautas.
Precisamos, enfim, combater a síndrome ideológica que ainda
persiste em alguns guetos anacrônicos. Seu exemplo mais acabado é a patologia
dos rótulos. Alguns jornalistas não perceberam que o mundo mudou. Insistem,
teimosamente, em reduzir a vida à pobreza de quatro qualificativos: direita,
esquerda, conservador, progressista. Tais epítetos, estrategicamente
pendurados, têm dupla finalidade: exaltar ou afundar, gerar simpatias
exemplares ou antipatias gratuitas. A boa reportagem é sempre substantiva. O
adjetivo é o adorno da desinformação, o farrapo que tenta cobrir a nudez da
falta de apuração. É, frequentemente, uma mentira.
A apuração de faz de conta representa uma das maiores
agressões ao leitor. Matérias previamente decididas em redutos sectários buscam
a cumplicidade da imparcialidade aparente. A decisão de ouvir o outro lado não
se apoia na busca da verdade. É um artifício para validar a premissa que se
quer impor. O pluralismo de fachada, hermético e dogmático, convoca pretensos
especialistas para declarar o que o repórter quer ouvir. Mata-se a reportagem.
Cria-se a versão.
É importante que os repórteres e os responsáveis pelas
redações tomem consciência desta verdade redonda: a imparcialidade (que não é
neutralidade) é o melhor investimento. O leitor quer informação clara,
corajosa, bem apurada. Não devemos sucumbir à tentação do protagonismo. Não
somos construtores de verdades. Nosso ofício, humilde e grandioso, é o de
iluminar a história.
Inúmeras foram as reflexões suscitadas pelo excelente texto
do repórter Rodrigo Lopes. O leitor, em qualquer plataforma, evita os produto
sem alma. Recusa as tentativas de engajamento ideológico. Quer matérias
interessantes, pautas próprias. Quer menos burocracia e mais criatividade. Quer
menos jornalismo de registro e mais reportagem de qualidade. Quer um jornalismo
rigoroso, mas produzido com paixão.
* Carlos Alberto di Franco é doutor em comunicação pela
Universidade de Navarra e diretor do departamento de comunicação do Instituto
Internacional de Ciências Sociais.
e-mail: difranco@iics.org.br.