A bizarra imprensa esportiva chinesa
Em fevereiro de 2004, a seleção de futebol do Kuait, então dirigida pelo brasileiro Paulo César Carpegiani, desembarcou em Guangzhou para uma partida contra a China. Na época, eu trabalhava num jornal chinês e estava no sudoeste do país realizando uma reportagem sobre uma pequena comunidade agrícola da etnia miao. Como era o único do jornal que falava o português, fui escalado para entrevistar o técnico brasileiro, embora não entendesse nada de futebol.
O editor queria que eu pautasse a entrevista sobre declarações que Paulo César supostamente havia feito à imprensa chinesa sobre a sua rivalidade de 30 anos com o técnico da China, o holandês Arie Haan. Ambos haviam jogado por suas respectivas seleções na Copa do Mundo de 1974, na qual a Holanda despachou o Brasil por 2 a 0 na semifinal.
Segundo suas supostas declarações, Paulo César enxergava o jogo entre o Kuait e a China como uma revanche pela derrota de 1974. Antes mesmo de o técnico brasileiro desembarcar em Guangzhou, manchetes nos jornais chineses já frisavam o seu profundo desejo de vingança contra seu arquirrival Haan.
Liguei para Paulo César e comecei indagando sobre o assunto. Ele ficou perplexo e me surpreendeu ao perguntar o nome do técnico da seleção chinesa. Quando disse que se tratava de Arie Haan, ele respondeu que nunca tinha ouvido falar dele e ainda quis saber se o holandês havia realmente participado do mundial de 1974. “Como é possível ter uma rivalidade com uma pessoa que nem conheço?” insistiu. Mas como explicar então as suas declarações à imprensa chinesa sobre a sua sede de vingança? “Deve ser imaginação da parte deles”, me respondeu com uma gargalhada.
Esse é apenas mais um episódio no bizarro no mundo da imprensa esportiva chinesa, onde é possível encontrar de tudo: matérias que parecem obras de ficção, casos de plágio e supostas “entrevistas exclusivas” com esportistas famosos que não passam de frutos da imaginação dos repórteres.
A cobertura esportiva na China começou a ganhar força a partir do final da década de 90, por dois motivos que impulsionaram a proliferação de jornais e revistas dedicadas ao esporte no país.
Primeiro, a imprensa foi obrigada a se adaptar à economia de mercado, ou seja, tinha de começar a fazer dinheiro. Os dias em que as redações eram alimentadas por generosas verbas do Estado haviam chegado ao fim. Para sobreviver, jornais passaram a lançar outras publicações que atrairiam leitores, dentre as quais tabloides e revistas sobre esportes, cotidiano e moda.
O número de publicações disparou, atingindo mais de 2.200 jornais em todo o país, um aumento significativo se comparado ao pouco mais de 40 que circulavam na época maoísta (1949-1976). Essas publicações variavam em gosto e gênero. Algumas, como o “Nanfang Zhoumo,” testavam os limites da censura, realizando matérias investigativas sobre corrupção e problemas sociais. Outras, como o “Nanfang Tiyu,” se especializavam em esportes e ocasionalmente publicavam notícias de gosto duvidoso, como um artigo que examinava o tamanho dos seios de uma ex-mulher de um astro do futebol mundial. Ambos eram devorados por leitores cansados da retórica marxista da imprensa oficial.
O segundo fator que alavancou o jornalismo esportivo nessa época foi a chamada “febre do futebol” que se espalhava pelo país. A partir de 1982, os chineses começaram a se apaixonar pelo futebol, principalmente o do Brasil. Zhang Xiaozhou, um dos colunistas esportivos mais famosos do país, certa vez me disse com orgulho que ele fazia parte da “geração chinesa de 82”, que havia aprendido a apreciar o futebol assistindo à seleção de Telê Santana jogar no Mundial da Espanha.
Em meados da década de 90, a China organizou o seu primeiro campeonato profissional de clubes, que contava com a presença de jogadores brasileiros.
Marcelo Marmelo, que antes de chegar ao país era um jogador desconhecido da segunda divisão no Rio de Janeiro, se tornou um astro. No auge de sua fama, ele não conseguia passear pela rua sem causar um tumulto entre torcedores.
Tudo que cheirasse a futebol passou a ganhar enorme popularidade. Chineses começaram a acompanhar atentamente os jogos dos campeonatos italiano e inglês e, durante a Copa da França em 1998, muitos acordavam às 2h ou 3h da madrugada para assistir aos jogos.
Nesse ambiente, a imprensa esportiva floresceu, atingindo o seu auge em 2002, quando sua seleção fez história ao se classificar para uma Copa do Mundo pela primeira vez.
A quantidade de jornais esportivos se multiplicava. E seus jornalistas passaram a ser extremamente bem remunerados, especialmente aqueles que conseguiam entrevistas exclusivas com craques estrangeiros.
Os repórteres pareciam torcedores obcecados com craques estrangeiros. No sorteio dos grupos para a Copa da Coreia e do Japão, um jornalista chinês ficou estático quando Pelé o cumprimentou com um “Hello.” Ele passou os próximos dias repetindo a todos que encontrava que era “amigo do Pelé.” Alguns meses depois, na chegada da seleção portuguesa a Macau para um amistoso contra a China, jornalistas chineses correram em direção aos craques portugueses para conseguirem fotos e autógrafos.
Em 2003, na ocasião da turnê que o Real Madrid realizou pela China, um jornalista chinês estava no banheiro da concentração do clube espanhol em Kunming, no sudoeste do país, quando o astro recém-contratado David Beckham entrou para fazer suas necessidades. Eles se cumprimentaram com um sorriso. Quando esse jornalista me contou essa história, ele pediu que não comentasse nada com os seus colegas. Por quê? Para quem conhecia o vale-tudo da imprensa esportiva chinesa, a resposta era óbvia. Caso seus editores descobrissem, no dia seguinte a manchete da Primeira Página do seu jornal provavelmente seria: “Nosso correspondente tem a honra de urinar ao lado de David Beckham”.
Entrevistas com esportistas de fama internacional (muitas frutos da imaginação dos jornalistas) começaram a encher as páginas dos jornais. O conteúdo era irrelevante para os editores. O importante era conseguir uma fotografia do correspondente ao lado do astro para provar que a entrevista era legítima. A fotografia servia como certificado de garantia e impulsionaria as vendas e a receita de publicidade.
Em alguns casos, era óbvio que tais entrevistas eram fictícias, pois eram feitas por repórteres que não tinham fluência na língua do astro ou simplesmente não estavam credenciados para cobrir o evento. Mas ninguém parecia se importar, contato que houvesse a fotografia.
Os jornalistas procuravam suas vítimas em eventos internacionais, às vezes se passando por torcedores para conseguirem a tão cobiçada fotografia. Com ela nas mãos, seguiam ao seu quarto de hotel e redigiam uma entrevista qualquer. Eles não se preocupavam em serem desmascarados. Afinal, qual o craque brasileiro, inglês ou italiano que sabe ler chinês?
O caso mais escandaloso envolvendo essa prática ocorreu pouco antes do início da Copa do Mundo de 2002.
O jornal esportivo chinês “Titan Zhoubao” publicou uma suposta entrevista exclusiva com o craque português Luis Figo, realizada por um de seus repórteres, Wen Tao. Parecia uma verdadeira façanha. Sem fluência no português e com um inglês apenas razoável, Wen Tao entrevistara um craque que não falava com a imprensa havia mais de um ano.
Ao ser questionado por Wen Tao sobre o astro inglês David Beckham, Figo supostamente respondeu: “Acho o Beckham mais bonito do que eu.” A frase virou manchete da primeira página do “Titan Zhoubao”, e a entrevista foi publicada juntamente com uma foto que mostrava o craque português dando um autógrafo a Wen Tao.
Havia apenas um problema: a entrevista era fruto da imaginação do jornalista. Por um descuido de Wen Tao, a sua “entrevista exclusiva” acabou chegando às mãos do assessor de imprensa da seleção, Fernando Santos. O “Titan Zhoubao” se viu obrigado a pedir desculpas à seleção portuguesa. Mesmo assim, Wen Tao continuou como correspondente do jornal no mundial de 2002, publicando artigos sob um pseudônimo.
Infelizmente, o debate atual sobre a imprensa chinesa no Ocidente gravita em torno da liberdade de expressão e censura por parte do governo. Mas há outros problemas extremamente graves como a falta de princípios éticos e profissionais. Essa não é uma questão que aflige apenas a imprensa esportiva. Recentemente, o “New York Times” examinou a prática corriqueira da mídia chinesa em aceitar dinheiro para publicar reportagens promovendo empresas e produtos.
A falta de princípios éticos nas Redações dá ao governo chinês uma desculpa para continuar a controlar a imprensa com mão de ferro. Por isso, essa questão não pode mais ser tratada por analistas ocidentais apenas como um tema secundário. As práticas empregadas por muitos jornalistas chineses são tão prejudiciais ao desenvolvimento da imprensa do país quanto a censura.
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