domingo, 29 de abril de 2012

A lição de Talese

Muito interessante o artigo de Maurício Stycer publicado hoje na Folha.


MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS
A lição de Talese
São Paulo, julho de 1986
MAURICIO STYCER

A PRIMEIRA oportunidade que tive de colocar em prática os ensinamentos de "Aos Olhos da Multidão" (Expressão e Cultura, 1973), de Gay Talese, ocorreu em julho de 1986.

Repórter iniciante no "Caderno B", do "Jornal do Brasil", fui premiado com a missão de acompanhar, dos bastidores, um show do RPM, a banda de rock que fazia mais sucesso naqueles meses.

Espécie de bíblia dos jornalistas culturais na década de 1980, o livro de Talese circulava em cópias xerocadas com o estranho título que seu primeiro editor brasileiro lhe deu -a tradução literal do original, "Fama e Anonimato", só seria adotada na edição de 2004, pela Companhia das Letras.

Entre tantas lições, a que mais me encantava no livro era a que dizia respeito ao milagroso poder da observação.

No mitológico perfil que escreveu sobre Frank Sinatra, como se sabe, Talese não falou com o cantor, apenas o observou -além, é claro, de conversar com integrantes do seu séquito.

Em São Paulo, num sábado de manhã, embarquei com o grupo no ônibus da Poladian que os levaria a Araraquara para mais um das centenas de shows da turnê.

"24 horas na vida do RPM" foi o título da reportagem, publicada no dia 25 de julho com fotos de Dilmar Cavalher, que mostravam o delírio das fãs de Paulo Ricardo.

O acesso franqueado à reportagem permitiu a constatação do clima pesado entre os integrantes da banda. No hall do hotel, na hora em que os músicos sairiam em direção ao ginásio onde aconteceria o show, por exemplo, testemunhei a fúria do tecladista Luis Schiavon com Aguiberto Santos, secretário do grupo: "Te falei para você só me chamar quando o cara já estiver aqui embaixo".

Paulo Ricardo ainda demoraria 15 minutos para descer.

Segundo Arthur Dapieve, no livro "BRock - O Rock Brasileiro dos Anos 80" (Editora 34), essa reportagem teve o mérito de ser a primeira a mostrar que Paulo Ricardo, Schiavon, Fernando Deluqui e Paulo P.A. Pagni já não se aguentavam mais, sinalizando a dissolução do grupo, o que ocorreria, pela primeira vez, em agosto de 1987, um ano depois.

O segundo parágrafo da reportagem mostra como absorvi de forma confusa os ensinamentos de Gay Talese. Descrevendo o clima dentro do ônibus, ao final do show, anotei:

"Paulo Ricardo, o líder da banda, adormeceu sabendo que uma laringite, recentemente diagnosticada, era a culpada pela rouquidão que o atacou ao final do show. Luis Schiavon, tecladista e cofundador do RPM, dormia intranquilo, irritado com os constantes atrasos de seu amigo Paulo Ricardo. Fernando Deluqui, o guitarrista, sonhava com um futuro trabalho solo, mais voltado ao seu modo de pensar. Paulo P.A. Pagni, o baterista, sonhava com seu cachorro de estimação, assassinado a pauladas por um ladrão dois dias antes.

"Aguiberto Santos, secretário e babá do RPM, não dormia: pensava em como poderia conseguir, algumas horas depois, uma passagem na ponte aérea para Moyra Linch, mulher de Paulo Ricardo, que resolveu, depois de tudo combinado, acompanhar o grupo ao Rio, para a gravação de mais um programa do Chacrinha."

Dias depois da publicação do texto, fiz no Rio uma longa entrevista com o líder da banda, na qual ele tocava apenas de leve num problema que, então, afetava o relacionamento entre os quatro integrantes: o uso de drogas.

Três meses depois da entrevista, Paulo Ricardo foi detido no Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro com alguns gramas de maconha.

Tempos depois, ao reencontrar o grupo num evento, Schiavon usava uma muleta, em decorrência de algum problema ortopédico. Ao me ver, levantou a muleta, fazendo o gesto de que gostaria de me acertar com ela.
Entendi como uma brincadeira, mas, pedindo perdão a Gay Talese, preferi não me aproximar para observar melhor.

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