domingo, 29 de abril de 2012

Os especialistas e a obrigação do repórter de questionar sempre

Imperdível. Deu hoje na coluna da Suzana Singer, ombudsman da Folha. Aula de Jornalismo.


Os especialistas
Reportagens baseadas apenas em quem trabalha na área ficam acríticas e podem induzir a erro

Uma parte considerável do noticiário é alimentada diariamente por "especialistas": de juristas a baristas, eles são ouvidos para comentar os últimos fatos, dar dicas ou fornecer dados de pesquisas.

Nada contra, desde que se mantenha um certo distanciamento crítico. Três exemplos recentes da Folha mostram que isso nem sempre tem acontecido.

Na última sexta-feira-13, o título principal de "Saúde" afirmava que "metade dos casos de dor de cabeça está ligada à mandíbula". A estimativa era de um dentista que criou há meses uma sociedade voltada justamente para orientar sobre dores de ATM (articulação temporomandibular). Foram entrevistados dois outros dentistas, que corroboravam a tese, mas nenhum médico.

O texto não esclarecia, mas a conclusão de que 50% das dores de cabeça vêm da mandíbula foi tirada de "observação clínica" -leia-se "nada de pesquisa científica".

"É uma inverdade, trabalhos sérios mostram que as cefaleias mais frequentes são a enxaqueca e a do tipo tensional, que correspondem a mais de 80% dos casos", rebate Marcelo Ciciarelli, 48, presidente da Sociedade Brasileira de Cefaleia.

Para Ciciarelli, reportagens como essa confundem o leitor, "levando-o a procurar tratamentos inadequados, a usar aparelhos e placas que, além do alto custo, na maioria das vezes pouco auxiliam".

O editor de "Saúde" admite que um neurologista deveria ter sido ouvido, mas não acha que a reportagem "pecou por falta de diversidade". "Parece improvável que todos os dentistas, mesmo os que nem lidam diretamente com ATM, conspirem para sobrevalorizar o lado odontológico do problema, e vários deles foram ouvidos", diz.

Só que dentistas também reclamaram da reportagem, cujo problema maior nem foi ter deixado de ouvir um médico, mas ter "comprado" um número sem questioná-lo.

Na penúltima edição de "Equilíbrio", de novo, só se ouviram interessados. Para falar sobre os benefícios da equoterapia, a reportagem ouviu quatro especialistas... em terapias com cavalos.

O texto também começava com um número impactante -"andando a cavalo, a pessoa recebe cerca de 2.000 novos estímulos cerebrais"-, sem citar a pesquisa de onde saiu o cálculo ou o que isso significa. A reportagem, sobre os ganhos da terapêutica mesmo para quem não tem problemas neuromotores, não tinha ressalvas nem comparação com outros métodos.

A influência dos especialistas se fez sentir também em uma reportagem do "Folhainvest" sobre a valorização de imóveis após reformas (2/4). Os três entrevistados eram:
1) um corretor de apartamentos;
2) uma arquiteta que compra, reforma e vende imóveis em Higienópolis; 3) o diretor da unidade de usados de uma grande imobiliária.

Como era de esperar, teciam as vantagens de recauchutar o imóvel antes de passá-lo adiante. Cada um citou uma porcentagem de valorização após a reforma, por volta de 60%, mas o título foi, inexplicavelmente, para "mais de 30%".

Em artigo na Folha (14/4), ao citar o viés dos especialistas ouvidos na imprensa, o professor titular de finanças da FGV William Eid Jr., 55, fala de um amigo jornalista que adoraria colocar nas reportagens "João da Silva, comprado, diz que a Bolsa vai subir. Já Antônio das Neves, vendido, diz que vai cair".

Se não dá para ser tão "explícito" na identificação das fontes, o melhor é buscar um contraponto. Por interesse ou paixão, o especialista só vê maravilhas naquilo que faz. Ao repórter cabe questionar em vez de engolir pílulas douradas.

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