Na capa, todo cuidado é pouco
Carlos Eduardo Lins da Silva
Ao permitir que o espaço mais nobre do produto fosse totalmente ocupado por anúncio, o jornal abriu brecha para ver seu prestígio corroer-se
"CAPA é a primeira impressão tanto para o assinante como para o leitor de banca, e ver nesse domingo TODA capa com publicidade, me perguntei: cadê o jornalismo?".
Assim começa a correspondência que Frederico de Oliveira e Souza me dirigiu sobre a primeira página da Folha do dia 12 de outubro. Ele e muitos outros se sentiram desrespeitados por receberem uma capa promocional abaixo do logotipo do seu jornal.
Ao permitir que o espaço mais nobre do produto fosse totalmente ocupado por um anúncio que, além do mais, tentava se parecer com notícia, o jornal abriu brecha para ver seu prestígio corroer-se diante do público.
Quase ninguém duvida da necessidade de o veículo de comunicação ser lucrativo para garantir independência editorial, investir em qualidade.
Joelma Sampaio Evangelista, "assinante decepcionada", escreveu: "Compreendo que o jornal precisa de apoio comercial para sobreviver, mas daí a obrigar o leitor a ler, logo de cara, uma página sobre um produto, é uma total falta de respeito. Gostaria de acreditar que os diversos departamentos da Folha são inteligentes o bastante para evitar esse tipo de coisa".
E esta não foi a única derrapada do jornal nesse infeliz domingo. Na capa "de verdade", havia uma "chamada" que não estava identificada como publicitária e remetia o leitor para o caderno Dinheiro.
O caderno de economia é material jornalístico, não publicitário. O anúncio da primeira página dirigia o leitor para outro anúncio, mas parecia endereçá-lo para notícias.
A publicidade é uma atividade fascinante, que valoriza e estimula a inteligência e a criatividade e desempenha importante função para promover a atividade econômica e difundir idéias úteis para a sociedade.
Mas às vezes criadores se excedem e tentam furar a muralha chinesa que precisa demarcar com absoluta exatidão propaganda e jornalismo.
Os veículos que abdicam dessa distinção ameaçam seriamente sua credibilidade, a virtude principal para lhes garantir a subsistência.
A Redação, questionada, afirma que "a separação Redação e Comercial nunca foi e nem será afrouxada".
Indaguei da Redação se o artifício da capa promocional já havia sido utilizado antes, já que eu não me recordava de precedente.
Fui informado de que, sim, uma vez, em 2003. Também me foi dito que "jornal usa com muita parcimônia esse recurso e a Redação é sempre comunicada, mas essa decisão é comercial".
A meu ver, trata-se de procedimento errado. A última palavra sobre a invasão do terreno tradicionalmente informativo deveria ser da Redação.
Ainda que estivesse registrada a marca "informe publicitário" acima da "manchete" publicitária (em família tipológica que, em minha opinião, não era claramente diversa da usada nas notícias), a capa promocional de domingo passado usurpou o jornalismo e ofendeu o leitor.
Já basta a praga da sobrecapa, que atrapalha a leitura, mas ao menos não se confunde com o noticiário.
A logomarca do jornal é sagrada, não pode ser tomada emprestada para promover nenhuma propaganda. O preço a pagar depois pode ser muito maior do que o recebido do anunciante agora.
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