Jornalismo da segunda vida
O espírito do jornalismo em que o ideal é que todos possam ser jornalistas acha muitos adeptos no lado de cá da realidade
MUITOS JÁ decretaram a morte do jornalismo impresso. Agora, já há quem preveja a substituição do jornalismo do mundo real pelo do universo da segunda vida, em que valores como a necessidade de checar os fatos para ver se eles pelo menos ocorreram deixam de ter qualquer significado.
O Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais, um dos raros grupos de intelectuais dispostos a produzir conhecimento independente que teimam em sobreviver no Brasil, realizou em São Paulo na semana passada seminário internacional sobre as novas mídias em que o mundo virtual foi uma das atrações.
A Second Life, criação de 2003 do Linden Lab, uma empresa de tecnologia de São Francisco, Califórnia, é muito mais do que um jogo. Pretende ser uma realidade alternativa.
Seus residentes, mais de 5 milhões atualmente, criam avatares de si próprios. O avatar não é um clone de seu criador nem um replicante do universo de Blade Runner. Ele é a pessoa melhorada. Um homem obeso e tímido pode virar atlético e audaz.
Os avatares ganham vida, andam, voam, trabalham, brincam, fazem negócios na vida virtual. Com dinheiro de verdade do mundo real. Compram roupas, terrenos, casas (já movimentam mais de US$ 60 milhões por ano).
Fazem jornalismo também. Há os meios de comunicação do mundo virtual, criados e desenvolvidos por avatares, que noticiam os acontecimentos da Second Life. E há os meios de comunicação do mundo real que se estabelecem na realidade alternativa. Reuters e CNN são dois exemplos de empresas jornalísticas que instalaram escritórios e correspondentes nesse novo universo.
Tudo poderia não passar de brincadeira inteligente, frívola ou psicótica -depende do gosto- de sociedades e indivíduos que já resolveram (ou pensam ter resolvido) seus problemas materiais básicos e podem se dar ao luxo de dar vida a bonecos em que superam suas frustrações e limites.
O problema é que esse espírito do jornalismo em que o ideal é que todos possam ser jornalistas acha muitos adeptos no lado de cá da realidade.
O conceito de jornalista-cidadão, que tem muito de positivo, pode gerar situações complicadas. Veja o recente exemplo de Mayhill Fowler, que entrevistou o ex-presidente Bill Clinton se passando por simples eleitora e entrou em reunião do candidato Barack Obama identificando-se como voluntária de sua campanha.
Ela registrou declarações sensacionais dos dois e causou grandes prejuízos a ambos. Fez um serviço público? Praticou bom jornalismo? Revelou à sociedade o que os políticos realmente pensam, mas não dizem em público? Ou foi antiética, desonesta, agiu sob a lógica de fins justificando meios?
Faz sentido discutir ética jornalística nesse ambiente? No seminário de São Paulo, um pesquisador britânico disse que o conceito de privacidade é "um produto da era industrial, que agora está acabando" e que, portanto, "não deveria nos surpreender que estejamos procurando construir novas formas de construir uma identidade on-line".
Se todos os valores humanos estão em xeque neste ambiente de múltiplas realidades, por que os do jornalismo sobreviveriam?
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