Meu amigo Oswaldo Munteal, professor da FACHA e da UERJ e, principalmente, BOTAFOGUENSE, é um dos caras mais inteligentes que conheço. Embora botafoguense inteligente seja uma redundãncia. É autor do belo livro "A Imprensa na história do Brasil. Fotojornalismo no século XX" (junto com Larissa Grandi - com ele na foto acima).
Oswaldo valoriza o blog e fez questão que eu publicasse o artigo abaixo. É um pouco grande, mas uma tremenda fonte de pesquisa. O cara sabe das coisas. O texto é assinado também pela Leiza Pereira.
A CEGUEIRA HISTÉRICA NO CINEMA: DIRIGINDO NO ESCURO DE WOODY ALLENLeiza Pereira e Oswaldo Munteal“Estou muito aliviado em saber que o universo, afinal, é explicável. Já estava começando a achar que o problema era comigo. Como agora se sabe, a física, feito um parente chato, tem todas as respostas”. Woody Allen. Fora de Órbita. Editora Agir, Rio de Janeiro. 2007. P. 171I. Introdução A obra de Woody Allen, Dirigindo no Escuro, apresenta a história de um diretor, Val, que apesar de ter conseguido ganhar dois Oscar’ s , estava num momento de crise em sua carreira. Sua ex-mulher Ellie, casada com um empresário/produtor da indústria do cinema, indica Val para filmar o cotidiano da cidade de NY, inspirado numa refilmagem de uma película dos anos quarenta.
O pano de fundo da história refere-se ao conflito pai/filho. Após uma seqüência de situações marcadas pela comicidade, todas ancoradas na hipocondria da Val; este no início das filmagens é acometido por uma cegueira psicológica. Não querendo perder a oportunidade de voltar ao mercado de trabalho e as filmagens, pois naquela altura só gravava comerciais para a TV, Val consegue um “olhar” substituto.
O lugar de precioso assistente, que faz o papel dos olhos ou interpretação do diretor, em primeiro lugar é ocupado pelo agente comercial, depois pelo estudante de administração que funciona como tradutor do operador de câmera chinês, e por fim o espaço é ocupado por Ellie.
Ao longo das filmagens Val passa pela vigilância de uma repórter de variedades, pelo ciúme compulsivo diante do noivo da sua ex-mulher, da namorada jovem e oportunista, e, finalmente a perspectiva de uma retomada do casamento com Ellie. O vazio da vida de Ellie e o complexo materno de Val se complementam de forma articulada num certo didatismo de Allen que faz lembrar as suas dificuldades matrimoniais na vida real.
Dois momentos entretanto, são cruciais: 1 – o tratamento psicanalítico de Val; 2- o reencontro de Val com o filho. O terapeuta sugere que Val reencontre o seu argumento do filme, e da partir deste movimento retome a profundidade do seu tempo de vida.
A partir desta ação Val conclui as filmagens recolhe o fracasso da sua obra, de público e de crítica, numa associação evidente a sociedade de massas estadunidense, e por outro lado mostra que esta mesma massificação é capaz de com os seus maneirismos e elitismos analíticos consagrar o imprevisível e inusitado. NY e Paris na virada do século XX para o XXI.
II. Histeria – breve reflexão sobre uma patologia A referência ao material indicado ao longo do curso é fundamental, nessa direção deve-se considerar as alterações quantitativas da função sensação. Assim diz a nossa apostila: “Podem ser circunscritas ou difusas. As circunscritas estão associadas à perda ou diminuição sensorial localizada num dos órgãos dos sentidos, por exemplo a audição diminuída. Pode ocorrer a chamada ‘personalidade paranóide dos surdos’ , quando encontramos sentimentos de desconfiança e inferioridade, em personalidades já predispostas, que podem tornar-se vingativas.”
Manifestações psicossomáticas se articulam ao sentimento, as nossas dificuldades com os traumas e a sua conversibilidade. Ao retomar o caso clínico de Val, pode-se verificar o seguinte aspecto: “As alterações quantitativas difusas ocorrem, por exemplo, em estados crepusculares os mais diversos, entre eles os histéricos, onde há turvação difusa da consciência, com diminuição global da sensação. Hiperestesias. Referem-se ao aumento da sensação em níveis acima do normal. Há uma sensibilidade geral aos mais diversos estímulos sensoriais. Encontra-se por exemplo em doenças físicas crônicas com astenia ou fadiga geral, na histeria e em estados de humor melancólico”. Esta é uma característica da personalidade de Val, e na sua luta pela individuação. Não se trata de um humor mais-valia, ou seja, voltado para um riso contra a alteridade. Pelo contrário Val ri de si mesmo, da sua desgraça pessoal, dos seus infortúnios, e sobretudo o fato dos carecimentos sociais reverterem para dentro.
Ainda recorrendo ao nosso texto base: “Hipoestesias. Podem ocorrer tanto como anestesias-ausência total da função sensação – ou analgesia – diminuição de uma sensação dolorosa. Os mais importantes e freqüentes ocorrem nos estados crepusculares dos histéricos graves. (...) Os fenômenos conversivos na histeria acontecem com marcadas alterações da função sensação, dos mais diversos tipos. Podem ocorrer: hiperestesia leve e difusa, sem nenhuma alteração orgânica, dores, sensações desagradáveis, hiper, hipo ou analgesias as mais diversas e da mais variada extensão; as anestesias podem ser minimamente circunscritas ou podem ocorrer em membros inteiros. São bastante conhecidos os fenômenos conversivos com hemianestesia, (um dimídio, ou metade do corpo, anestesiado) cegueira ou surdez psicogênicas. Em todos estes casos a inervação permanece intacta.”
Val é um caso clássico? Pode ser, Freud em seus três ensaios sobre a sexualidade é categórico quando caracteriza a histeria como um fenômeno especificamente feminino. O desejo inconfessável que se revela na negatividade da conclusão do ato sexual. Se este é violento por natureza, choque de corpos físicos, aparece já mesmo em Freud com o nome de paranóia, quando vem a lume o caso de Daniel Paul Schreber. O desejo de ser penetrado por Deus ao mesmo tempo em que o desejo pelo poder e a conquista do mesmo se verificam. Histeria e Paranóia. Patologias que se complementam, personalidades em busca da identidade.
A histeria é também masculina e a dimensão simbólica, contribuição junguiana, confere um tipo de energia para a revelação desta patologia.
II. Histeria – breve contextualização psicológica O personagem vivido por Woody Allen no Filme “Dirigindo no Escuro”, foi construído com características que denotam grande fragilidade emocional explicitada em vários momentos do filme em diálogos tragicômicos, culminando com a cegueira histérica.
Desde o início do filme, o discurso do personagem apresenta aspectos infantis. No seu primeiro diálogo, ele está trabalhando no Canadá somente há um dia e liga para a namorada em Nova York dizendo não estar suportando ficar tão longe dela, que está com muitas saudades e que deseja voltar para casa. A namorada sinaliza que ele só está há um dia distante dela, e ele justifica sua decisão pelo fato de não conseguir dormir sozinho. Vários diálogos e em vários momentos no filme ele demonstra sua imaturidade emocional, repetindo que não consegue dormir sozinho, que precisa de alguém para cuidar dele.
A ex-mulher, mesmo estando atualmente casada com o produtor do filme que ele irá dirigir, demonstra grande carinho e cuidado por ele. É ela quem convence o marido a oferecer a direção ao Val Waxman, personagem vivido por Woody Allen. É bem interessante notar a dependência de Val do feminino e a forma maternal que a ex – mulher cuida dele, ambos se complementam na neurose.
Ela, apesar de já estar separada há algum tempo e já estar casada com outra pessoa, apresenta-se bastante maternal, acolhedora e preocupada com ele. Ele, por sua vez, apresenta-se de maneira frágil, sinalizando sempre que precisa de uma “mãe” que cuide dele. Mesmo sendo um diretor de cinema reconhecido por sua inventividade e criatividade, aspectos femininos que ele aparentemente lida bem e conscientemente, existe um aspecto inconsciente e sombrio contrário a sua persona masculina a que Jung denominou de anima , onde ele demonstra estar totalmente subjugado e projetado na figura da mulher, denotando total dependência.
Muitas são as características histéricas apresentadas pelo personagem. Demonstra dificuldade de lidar com as frustrações. Já se separou da mulher há um tempo, ela já se casou com outra pessoa, mas ele ainda não elaborou a separação e quando a encontra expressa sua raiva de modo forte, impulsivo, teatral e histérico. O personagem possui facilidade de somatização, ele mesmo se define como hipocondríaco e apresenta grande dependência de pílulas mágicas. Ingere tipos diferentes de medicamentos, ora para acalmar, ora para excitar, sendo que um cura o efeito colateral do outro.
Histéricos quase sempre tem uma atitude extrovertida, com a libido voltada para o ambiente. Possuem um contato afetivo e sedutor. Expressam suas idéias, emoções e frustrações com grande teatralidade.
São sugestionáveis com facilidade e se deixam influenciar por sintomas transformando – os em doenças. Somatizam como forma de manifestação da sombra, que utiliza o corpo para expressar o que está inconsciente. Como diz Walter Boechat : “a localização destes fenômenos tem sempre um caráter simbólico, o corpo adquire um status de linguagem simbólica do inconsciente”.
O ponto central do filme é quando o personagem começa a enfrentar as dificuldades concretas do cotidiano de um estúdio de filmagem e adquire uma cegueira inexplicável, que é diagnosticada como psicológica. Ele faz vários exames clínicos e é constatado que não tinha nenhuma causa física, portanto, podendo ser diagnosticado como uma cegueira histérica.
Levando em consideração que a cegueira histérica é considerada como uma alteração da função sensação, que é denominada como função do real , e percebendo que a cegueira se instalou no momento em que ele efetivamente começa a dirigir o filme, que tem como roteiro as dificuldades de relação de um pai com o filho, fato que o remete a sua vida pessoal, a cegueira é uma maneira de impedi-lo de enxergar a realidade. Ele demonstra não possuir força de ego o suficiente para enxergar o que a realidade tem para lhe mostrar.
A solução encontrada, sugerida pelo seu agente, é a de que a verdade sobre sua cegueira não seria dita, visto a necessidade que tinha de realizar a direção do filme para que pudesse retornar ao mundo dos negócios. Como seu agente, ele iria acompanhá-lo o tempo todo, fazendo o papel de seus olhos, vendo por lê, dirigindo por ele, acompanhando-o onde quer que ele fosse.
Aceitou esta sugestão e assim encontrou uma forma de continuar a direção do filme, mas, mais do que isto, encontrou uma forma de alguém cuidar dele, ver por ele, alimentá-lo com informações e resoluções, uma “mãe” que cuidasse dele.
Este processo teve 3 etapas. Primeiro foi o agente, mas logo ele proibido de entrar no estúdio e foi substituído por um tradutor koreano que estava acompanhando o câmera men. Foi demitido no meio da filmagem, e então, a ex-mulher assumiu este papel.
É muito interessante observar esta passagem. São 3 etapas, 3 estágios, até chegar ao encontro da ex-mulher, que era inconscientemente o que ele desejava, e retomar a visão.
A primeira etapa, a do agente, ele é colocado diante da realidade de alguma maneira. O agente mostra para ele que é preciso ganhar dinheiro, enfrentar as filmagens não perder a oportunidade de realizar o trabalho. Mesmo sem enxergar, ele o leva pelo braço até o local de filmagem. Talvez o papel do agente fosse como o de um pai que não aceita a desculpa do filho para faltar na escola. Um pai amoroso, que o acompanha, mas que não deixa o filho desistir.
A segunda etapa é a do koreano, que é um estrangeiro, alguém fora da realidade dele, mas que aceita cuidar dele, fazendo este papel de “olhos” do diretor. Talvez a figura do koreano represente o mundo externo, o desconhecido, a realidade estrangeira, aquilo que ele precisa enfrentar para crescer.
A terceira etapa é a ex-mulher que assume o papel de acompanhante. Afetiva e conhecedora de seus hábitos, ela cuida dele com cuidado e presteza, e assim retomam um vínculo que tinha se perdido com a separação. Conversam muito e recordam situações que viveram quando estavam casados. Ao sentir alguma segurança afetiva, a segurança que uma criança sente ao estar próximo e vinculado com a mãe, ele retoma a visão.
Ele termina o filme e obviamente a crítica americana não vê com bons olhos, mas a crítica francesa o classifica como gênio. Ele volta a viver com a mulher e vão para Paris receber os louros.
Aparentemente ele demonstra que irá retomar sua fase criativa, o que sinaliza que somente quando está vinculado com alguém que cuide verdadeiramente dele, que faça com que ele se sinta amado, aí sim, haverá espaço para fluir o aspecto feminino da criatividade. Caso contrário ele fica “cego” para sua anima, sua criatividade e inventividade ficam bloqueadas, ele é incapaz de produzir, de criar, de se relacionar com o mundo exterior através do trabalho. Fica atemorizado e histérico.
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