domingo, 26 de agosto de 2007

A Invasão do Jornalismo, Janio de Freitas

JANIO DE FREITAS

A invasão do jornalismo

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Não há dúvida de que os diálogos seriam atos privados. Mas não significa que ocorressem em privacidade
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A RELAÇÃO entre jornalismo e invasão de privacidade é muito mais complexa do que aparenta na intensa discussão, desde quinta-feira, a partir do diálogo de e-mails publicado pelo "Globo", que os captou fotografando os computadores de dois ministros em sessão do Supremo Tribunal Federal.
Onde haja liberdade de imprensa, não consta que jamais se tenha ao menos esboçado solução satisfatória, em teoria ou na prática, para o conflito entre jornalismo/interesse público, de uma parte, e sigilo/interesse estrito, de outra. A dubiedade domina essa fronteira. Os casos de nitidez indiscutível de invasão, antes escassos, com a permissividade da internet às inserções mais levianas, ou criminosas mesmo, na "rede" tornaram-se tão vulgares quanto impunes.
As reações condenatórias referem-se, portanto, ao jornalismo impresso. E, no caso, nem elas guardam nitidez conceitual, jurídica ou intelectual. As fotografias dos computadores, feitas à distância dos dois ministros, e a publicação dos diálogos foram definidas por Nelson Jobim como "interceptação de comunicação" e "intromissão anticonstitucional a um Poder da República".
Interceptação não foi. Como a todo ministro da Defesa conviria saber, interceptar é interferir em um percurso pretendido, seja de um avião, de uma tropa, de uma mensagem, de carga, entre inúmeros possíveis. Houve constatação e documentação do constatado. Sem intervenção alguma na livre troca de mensagens entre os dois ministros.
Já a eloqüente "intromissão anticonstitucional a um Poder da República", lembra logo alguma coisa, antes de sujeitar-se ao reparo de que as fotos e a publicação, tanto não se "intrometeram" de forma alguma em Poder nenhum, que o próprio Supremo Tribunal Federal as considerou referentes a mensagens apenas pessoais, desprovidas de conotação oficial, e por isso dispensou-se de toda manifestação a respeito. A "intromissão anticonstitucional" de Nelson Jobim lembra logo que se trata do autor, valendo-se da tarefa de revisor gráfico, da intromissão no texto da atual Constituição de artigos não aprovados, e nem ao menos conhecidos, pela Constituinte de 1988. O que não impediu o autor da autêntica "intromissão anticonstitucional" de chegar a presidente o STF -fato que, se não o define, porque já se definira, pode definir o país.
Em nota, o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (nome historicamente tomado como sinônimo de defesa da liberdade de informação) pôs o assunto sob uma comparação que não sei se mais surpreendente ou mais insultuosa para o jornalismo: "O Brasil não pode virar um "Big Brother'". Seja o daqui ou a matriz plagiada, o "Big Brother" faz parte do processo de imbecilização imposto pelo método de nivelamento por baixo, muito adotado em meios de comunicação, para mais faturar em publicidade com o maior número de telespectadores/ouvintes/leitores. É impossível que Cezar Britto não se tenha inquietado com a evidência, proporcionada pelas fotos e publicação dos diálogos, de que a aposentadoria precipitada do hoje ex-ministro Sepúlveda Pertence e a escolha de seu substituto têm, até agora, injunções políticas e partidárias que se sobrepõem aos critérios apropriados para o Supremo.
Estar próximo de quem fala ao telefone e, notado o interesse público do que é dito, noticiá-lo; ou ouvir, de fora de um gabinete, um diálogo de interesse público e noticiá-lo -são atos de invasão de privacidade ou de função do jornalismo? Essas e situações semelhantes ocorrem todos os dias, aqui e pelo mundo afora, desde que o jornalismo é jornalismo. E haverá diferença essencial, para a função do jornalismo e para o interesse público, entre o que é ouvido sem uso de interferência física e o que é lido em computadores de tela voltada para o público?
Em certa medida, não há dúvida de que os diálogos de tais situações seriam atos privados. Mas, embora a contribuição de uma palavra para a outra, por serem privados não significa que ocorressem em privacidade. Foram deixados por seus autores ao alcance de terceiros. E não importa quantos terceiros.
Os ministros Cármen Lúcia Rocha e Ricardo Lewandowski nada escreveram, nos diálogos fotografados e publicados, que os comprometesse, moralmente, como pessoas ou como magistrados. Se foram desavisados, o foram por conta própria. O que torna injusto atribuir ao repórter-fotográfico Roberto Stuckert e ao seu jornal menos do que a alta qualidade do jornalismo que praticaram. Ou seja, da função pública que têm e exerceram.

Fonte: Folha de S. Paulo

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