Mais uma bela análise do ombudsman Mário Magalhães na Folha de hoje. Aula de Jornalismo com J maiúsculo.
De Abu Ghraib ao complexo do Alemão
É falso o dilema entre Estado omisso e Estado sem limite. Ambos são fora-da-lei. No Estado de Direito, a lei impõe e limita. O jornalismo fiscaliza
Mais do que o título, "Laudos trazem indícios de tortura, diz OAB", impressionou na edição de anteontem da Folha uma passagem logo na abertura da reportagem: ao tratar dos 19 mortos na operação da quarta-feira retrasada no complexo de favelas do Alemão, o texto se referiu a "vítimas de supostos confrontos entre policiais e traficantes".
Isso mesmo: "supostos confrontos", e não "confrontos". Um acerto jornalístico: cresce a suspeita de que os fatos não correspondam à versão do governo do Estado do Rio.
As informações sobre os laudos cadavéricos começaram a aparecer nos jornais na quinta, mas o relato detalhado saiu no dia seguinte.
A Folha contabilizou: 13 mortos receberam tiros por trás; dez corpos apresentavam "ferimentos ensangüentados, escoriações e manchas arroxeadas"; em cinco constatou-se "presença de pólvora nas bordas dos ferimentos de entrada de bala, o que indicaria proximidade entre quem atirou e quem foi baleado"; um morto teve nove perfurações.
Até a sexta se ignorava o que se passou na área à qual os repórteres não tiveram acesso, o alto do morro carioca onde ocorreram as mortes. Mantinha-se o mistério.
Por isso, não havia como descrever "confrontos" que podem não ter existido -conforme a Ordem dos Advogados do Brasil, alguns "mortos em tiroteio" talvez tenham sido assassinados depois de dominados e espancados.
O salutar ceticismo jornalístico em relação ao poder tinha motivos suplementares para ser exercido desde o dia 27. Chamou a atenção a desproporção entre as 19 mortes de um lado e nenhuma do outro. Para 19 "bandidos" abatidos, houve somente três feridos e 12 armas apreendidas.
Ao mesmo jornalismo que deve informar sobre promiscuidade -ou inépcia e negligência- de autoridades com organizações criminosas, recomenda-se exigir dos governos o combate ao crime nos marcos da lei. É falso o dilema entre Estado omisso e Estado sem limite. Ambos são fora-da-lei. No Estado de Direito, a lei impõe e limita. O jornalismo fiscaliza.
Mesmo que todos os mortos fossem delinqüentes, eles deveriam ser presos, se estivessem sob domínio da polícia. Assim como militares iraquianos (no governo Saddam Hussein) e americanos (na ocupação) não tinham direito de torturar detentos na prisão de Abu Ghraib.
A Folha faz bem ao persistir na investigação. Não cabe ao jornalismo independente servir de porta-voz, mas monitorar e questionar o poder.
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